4.04.2017

bombardeamento

Subo as longas escadas rolantes da estação de metro do Levski Stadium, quieto e em fila indiana, engolido pelo emaranhado novelo de silêncio dos passageiros. À minha frente, uma mulher leva uma mochila às costas com a imagem duma banda qualquer de metal. São quatro homens com a face pintada de branco, os lábios e os olhos de negro e, por fim, um sorriso largo a lembrar-me o do Joker. Por causa do desnível dos degraus, essa imagem está mesmo à frente dos meus olhos.
No topo da escada está um polícia, com o habitual fato de macaco azul que os polícias búlgaros usam. Também sorri, mas não tanto, para cada uma das pessoas que a escada vai cuspindo. Sei que, de um momento para o outro, vai chamar alguém à sorte e pedir a documentação. Uma vez, há alguns meses atrás, calhou-me a mim. Fitou o meu cartão de cidadão português e o visa búlgaro durante mais tempo do que o necessário. Depois pôs um olhar inquisidor e disse: "Portugalsko...". Eu assenti com a cabeça e ele devolveu-me tudo para a mão. Hoje não. Será a vez de outro.
Assim que as grandes portas de vidro da estação se abrem, uma sirene e um aviso mecânico de que a cidade vai ser bombardeada enchem o espaço. Por um segundo acredito, mas depois percebo que a cidade continua a respirar como de costume, sem acreditar que vêm aí bombardeiros. Um homem percebe o meu susto e acalma-me dizendo que é apenas um teste. Ainda bem. Se eu morresse hoje, os últimos sorrisos que tinha visto seriam o de uma banda de metal e o de um polícia inquisidor.
Respiro fundo e enfrento de novo a cidade.  O nosso ritmo cardíaco é agora igual. Caminho pelas suas ruas à mesma velocidade que ela caminha por mim. Uma mulher refugiada disputa alguns pedaços de pão com uma dezena de pombos. Não sei como é o pão foi ali parar, muito menos os pombos, mas imagino o percurso dela. Talvez a Turquia, talvez o mares Mediterrâneo e Egeu num barco improvisado. Sei lá...
Sei que um grupo de ciganos toca guitarra e dança no meio do passeio. A maior parte das pessoas contorna-o mantendo pelo menos dois metros de distância. Quase todos os passageiros dos eléctricos que passam olham com curiosidade, como se estivessem a olhar para animais numa jaula sem perceberem que são eles mesmos que estão enjaulados. Há um homem branco, de idade avançada, que atira a mala para o chão e se põe a dançar com eles. Tenta manter-se na vertical com apenas um dos pés, o que consegue dificilmente. Uma cigana que tem vários cigarros na mão aproxima-se e pede-me mais um. Que não fumo, respondo. Ela aperta-me a bochecha e diz qualquer coisa incompreensível. Regressa ao grupo e entrega todos os cigarros a um homem que olha para mim e me agradece num gesto. Pensa que fui que lhos dei.
Enjaulo-me num desses eléctricos também. Uma mulher sem pernas pede-me ajuda com a cadeira de rodas. É pesada como a vida, pelo menos custa-me bastante colocá-la dentro do vagão. A mulher sobe fazendo dos joelhos os pés. Como será ver o mundo àquela altura? Não sei, mas sei que ela me devolve o melhor sorriso do dia. Apenas uma paragem depois, ajudo-a a sair.
Eu não queria sair já aqui. Na verdade, nem sei muito bem onde queria sair. Só o fiz para ajudar a tirar a cadeira de rodas do eléctrico. Volto para trás. Tudo o que posso e devo fazer hoje, já que não morri debaixo de nenhum bombardeamento, é oferecer uma refeição quente a quem anda a disputar comida com pombos.
Encontro a mulher. Encostou-se a um canto de mão estendida. Percebo que ela ainda nem sequer sabe pedir. Tem vergonha e faltam-lhe as forças. Todos os meus problemas se diluem num vazio incompreensível.
Esta cidade é louca. É por isso que estou apaixonado por ela. Até um dia estoirar. Até um dia...

7 comentários:

Pequeno caso sério disse...

Quando nós deparamos com visões como essa é que percebemos quão ridículas são as nossas preocupações e problemas. Pena é que esses laivos de lucidez durem pouco em nós. A sacana da rotina dos dias faz de nós cada vez mais insensíveis. Banalizou - se a dor e tudo já nos parece...normal pois pensamos ser inatingíveis . Até ao dia em que deixarmos de o ser e precisarmos de alguém que nos ofereça um prato de comida quente.

P.s- pelo que se ti vou lendo, não me surpreenderam os gestos. Ainda bem que continuas sensível ao outro.
;)

Ivar C disse...

Pequeno caso sério, nunca me considerei inatingível, por acaso. Aliás, acho que o que está a acontecer bastante é precisamente a perda dessa ilusão. :)

Pequeno caso sério disse...

Não me referia a ti. Referia - me ao ser humano em geral e incluí - me a mim própria.
Imagem que retenho até hoje? Uma mãe, exausta, mendigava nas ruas de Nice enquanto o filho dormia também exausto ao seu colo.
Podia ser em Portugal.
Podia ser eu.
As pessoas não paravam para ajudar porque já se tornou "hábito " mas a mim, que sou mãe, toucou - me particularmente aquele ...quadro.
Era deste hábito que torna as pessoas insensíveis de que falava.

Anónimo disse...

Ivar, imagino que não seja fácil estar num páis que não o nosso, longe dos nossos, imagino!
Quero que saibas que, embora raramente comente, acompanho-te há anos, desde os tempos de Aveiro.
Vai aparecendo...
Beijinho,
Carolina

redonda disse...

Estás a escrever e a agir como quem vê e não é indiferente.
Se não fosse já tua seguidora, são textos como este, que fariam com que passasse logo a sê-lo e a gostar muito de ti.
um beijinho
Gábi

Anónimo disse...

Acho incrível alguém, penso que depois de muito tempo, abandonar o conforto da sua cidade (certamente com as suas dificuldades, mas pelo menos a segurança do território conhecido) e partir assim, ainda por cima para um território tão difícil. Quando passamos por dificuldades ficamos ainda mais solidários com as dificuldades alheias, digo ainda mais por nunca ter sido indiferente ao sofrimento alheio mesmo sem estar a sofrer nada, já chorei em frente a muito telejornal pela dor que é impossível não adivinhar nos outros perante certos acontecimentos, para mim o sofrimento dos outros nunca foi banal e tal como o Bagaço Amarelo nunca me considerei inatingível. Estes seus testemunhos comovem-me e quis dizer-lhe.

Ivar C disse...

Pequeno caso sério, obrigado. :)

carolina, que saudades. :)

redonda, obrigado por estares aí. beijinho :)

anónimo, obrigado. :)