9.04.2016

dez

No fundo da marquise havia um tanque de lavar a roupa, esquecido e humilhado pela máquina de seiscentas e cinquenta rotações que entretanto se instalara a poucos metros. Não me lembro uma única vez de alguém ter aberto a torneira ansiosa por enchê-lo, mas lembro-de ser tão pequeno que o podia trepar e meter-me lá dentro. Enquanto o pude fazer, esse tanque foi o meu avião. Pilotei-o durante milhares e milhares de quilómetros a contemplar a paisagem que se via lá embaixo, desde a vidraça que fechava aquele compartimento do segundo andar da casa onde cresci.
Às vezes, em vez de o pilotar, planava. Ia ao frigorífico buscar uma das mousses de chocolate que a minha mãe costumava fazer e comia-a apenas em duas colheradas. Depois ficava ali, com a pequena taça de vidro na mão à espera de absolutamente nada, tentando apenas prolongar o doce momento que acabara de viver.
Nunca fui de comer doces em pequenas doses. Era guloso e, fosse qual fosse o doce, comia-o em apenas alguns segundos de forma a atingir um maior nível de prazer, mesmo que isso implicasse depois ver outras crianças ainda a comer quando eu já não tinha nada.
Quando me apaixonei a sério pela primeira vez por uma mulher contei-lhe esta história. Estávamos num café em Aveiro e eu já não era assim tão guloso. Bebíamos cerveja os dois e ela sorriu-me. Deu-me a mão e abriu os enormes olhos azuis que costumavam hipnotizar-me mesmo quando não estavam perto de mim.

- Não faças isso connosco... - pediu.
- Isso o quê?
- Abocanhar o nosso Amor todo de uma só vez.

Foi o Amor mais longo da minha vida. Quando ele acabou, comecei este blogue, que tem agora dez anos de idade. Não é que a idade seja importante, mas o que ele já me deu é definitivamente importante. Já conheci muitas pessoas através dele, incluindo um Amor que não acaba nem mesmo quando acaba.
Hoje de manhã, por exemplo, alguém que aqui vem lembrou-me que escrevi este texto em Janeiro deste ano, numa fase da minha vida em que tudo o que levava à boca me sabia mal, fosse em pequenas ou grandes doses.
Hoje vivo na Bulgária, onde nunca me  tinha imaginado a viver. Pela primeira vez na vida tenho dois Amores e não sei bem o que fazer com isso. Tenho um emprego razoável e uma vida que, se me esquecer das inesquecíveis saudades que sinto, me satisfaz, também por causa deste blogue e de quem me vem lembrar do que escrevi há mais de meio ano.
Obrigado.

15 comentários:

Maria Eu disse...

Obrigada, Ivar! Obrigada por nos dares o prazer da leitura das palavras que tão bem nos descrevem lugares, emoções... Obrigada por me tocares o coração!

Ivar C disse...

Maria Eu, sou eu a agradecer. :)

São Rosas disse...

Bem hajas, Ivar!

Agridoce disse...

E conseguiste? Não abocanhar o vosso amor de uma só vez? :)

Ivar C disse...

São Rosas, bem hajas tu. :)

Agridoce, e isso lá é possível?! :)

Agridoce disse...

Estava em crer que não, mas nunca se sabe :)

Ivar C disse...

Agridoce, isso dava um blogue. :)

Claudia Sousa Dias disse...

Obrigada por este blogue, Ivar. É maravilhoso.

Ivar C disse...

claudia sousa dias, obrigado... pela tua presença, principalmente. :)

pequeno caso sério disse...

Não dez anos , é certo , mas já são muitas as horas de companhia (com ou sem comentários).

Obrigada pelo que nos deixas saber de ti. que venham mais dez.
;)

Ivar C disse...

pequeno caso sério, mais vinte... daqui a vinte compreendo-vos. :) beijinho.

AMarguinha disse...

porque não? porque não podemos abocanhar o amor todo de uma vez? Porque temos que ter restrições? eu também sou gulosa e quando abro um pacote de bolachas acho que só faz sentido acabar o pacote, coitadinhas das outras bolachas que se sentem descriminadas! :)
Sou assim também, em tudo, sou intensa, se é para comer é com prazer, se é para amar também é com tudo o que tenho direito. Se é para viver também quero tudo! porque não?

Ivar C disse...

marguinha, dizem que se gasta mais rápido... :)

marta disse...

Parabéns pelos dez anos, é sempre um prazer passar por aqui!

Ivar C disse...

marta, obrigado. :)