11.07.2013

respostas a perguntas inexistentes (264)

Sentei-me na mesa do café que me pareceu mais apetecível, isto é, naquela que me tornava o mais transparente possível. Todos os clientes estavam virados para o televisor e, naquele meu canto, nenhum dos seus olhares se cruzava comigo. Até a empregada de mesa demorou algum tempo a dar pela minha presença e, quando finalmente se aproximou, pediu-me desculpa.

- Não há problema.  Queria um café e uma Macieira, por favor.

Não sei se já vos aconteceu ter o cérebro divido em dois, como se um dos hemisférios estivesse em plena actividade e o outro tivesse tirado algum tempo para sonhar. Era assim que eu estava. Por um lado, sentia-me pela primeira vez capaz de perceber tudo o que me tinha acontecido, de pegar nos factos e colocá-los numa linha de pensamento como se fosse um puzzle terminado. Finalmente, pensei. Por outro lado, sentia-me numa espécie de planeta gigante onde eu era o único habitante. Podia fazer tudo o que me apetecesse e não tinha receio nenhum da solidão. Por algum motivo, sabia que mais tarde ou mais cedo aterraria ali uma nave qualquer com uma mulher por quem me ia apaixonar.
Primeiro bebi a Macieira, num só golo ansioso. Depois beberiquei o café, gozando plenamente a mistura do seu sabor com o do brandy. Apercebi-me que o meu paladar estava bastante apurado. Depois abri um livro que comecei a ler nesse preciso momento, mas propriamente, O Processo, de Franz Kafka.
Dois anos antes, tinha eu dezasseis anos, apaixonei-me com a intensidade única que aquela idade permite por uma mulher bastante mais velha do que eu. Chamava-se Cristina, tinha trinta e poucos anos e cheirava sempre ao mesmo perfume, algo que me fazia lembrar longas extensões de campos verdes. Era casada com um homem qualquer que nunca cheguei a conhecer, mas que estava emigrado no Canadá e não dava notícias de vida há bastante tempo. Assim, juntaram-se por mero acaso um jovem surpreendido pelo Amor e uma mulher já desiludida com esse mesmo Amor.
Lembro-me que estava uma chuva intensa no dia em que ela me levou àquele café para se despedir de mim. Já me tinha dito que se queria afastar, mas faltava explicar o motivo, se é que o motivo para acabar uma relação é importante. Sinceramente, não sei se é. Sei que esperava que ela me viesse com aquela conversa habitual de que as nossas idades eram incompatíveis, ou que me anunciasse que o marido dela decidira aparecer de repente. Mas não.

- Exactamente daqui a dois anos, quando tu já fores maior de idade, se eu ainda estiver apaixonada por ti venho aqui a este café e espero toda a tarde que apareças.

Era fim de tarde e ela ainda não tinha aparecido. Paguei a conta, que entretanto contava com mais duas cervejas e uma torrada, e saí. Talvez tenha sido a primeira vez que o Amor me explicou que não vem sempre para ficar. Que é um viajante como qualquer outro que só está bem onde não está.
Às vezes ainda me pergunto, no entanto, se nesse dia ela se lembrou de mim.

6 comentários:

nos"entas!!!! ( e feliz) disse...

;)
Aposto que sim!!!
ai os amores ingénuos...foram os melhores
Beijinhos Bagaço

Ivar C disse...

nos"entas!!!! ( e feliz), são os melhores, são. beijinhos. :)

portuguese girl with american dreams disse...

sem duvida os melhores amores:)

Ivar C disse...

Portuguese Girl With American Dreams, pois são... :)

Eli disse...

Ena... é para engolir em seco por te compreender completamente e conseguir estar no mesmo sítio da personagem, no mesmo momento... a imaginação é assim estranha e ao mesmo tempo é por isso que é tão interessante. :)

Ivar C disse...

eli, eu já nem sei o que é estranho. a normalidade às vezes é-me tão estranha... :)