5.29.2007

tenho que atravessar a estrada

Hoje de manhã ajudei uma senhora a atravessar a estrada. Ela pediu-me, e eu fiz parar alguns automóveis impacientes para a levar para a outra margem. Depois perguntei-lhe se precisava de mais alguma coisa. Que não, respondeu, e fui tomar café.
De regresso a casa, passado pouco tempo, a mesma senhora pediu-me ajuda para atravessar a mesma rua no sentido inverso, o que tornei a fazer mas, desta vez, já não lhe perguntei se precisava de mais alguma coisa. Fiquei com a sensação que ela não se lembrava de mim.
Em casa arrumei o computador e bebi um iogurte líquido. Depois fui para o carro e arranquei em direcção à estação de comboios de Aveiro. Um homem gordinho fez-me sinal para parar. Estava a ajudar a mesma senhora a atravessar a mesma via.
Andei alguns quilómetros mas não aguentei. Voltei para trás numa rotunda e estacionei perto daquela mulher idosa, que continuava no mesmo sítio. Perguntei-lhe se ela sabia onde morava ou se tinha o telefone de algum familiar, que eu a levava onde fosse preciso. Ela repetiu duas vezes: tenho que atravessar a estrada, tenho que atravessar a estrada.
Ainda insisti e tentei arranjar uma forma de obter qualquer informação dela, mas era impossível. Ajudei-a mais uma vez a atravessar a estrada e fui embora.
No comboio, durante todo o percurso entre Aveiro e Espinho, o meu cérebro engaiolou as sua palavras esvoaçantes: tenho que atravessar a estrada.

7 comentários:

Anónimo disse...

É impossível ficar indiferente a este post. Fez-me ecoar no pensamento as palavras:

Que importa àquele a quem já nada importa
Que um perca e outro vença,
Se a aurora raia sempre,
Se cada ano com a Primavera
As folhas aparecem
E com o Outono cessam?

Ricardo Reis

Sublinho o "já" na primeira frase. A fragilidade que transmite ao resto do texto... Não se trata de um simples ignorante que por consequência é feliz, mas sim alguém que já viu a vida de outra forma e desistiu.

Luciferina disse...

Um momento triste... Mas fizeste o que tinhas a fazer: ajudaste! Muitas pessoas passariam ao lado sem se preocupar... É nos pequenos actos que nos revelamos como pessoas.

Ivar C disse...

amigo anónimo, um grande abraço.

luciferina, ajudei... a atravessar a estrada. Só!

sisifo disse...

Se se desse o caso de ser necessário escolher um texto para justificar este 'blog', começaria por aqui. Certamente pela escrita, pelo carácter confessional, pela estranheza, pelo delírio, pela santidade, pela surpresa. Mas acima de tudo - e porque nada sobra de humano se à volta não se instalar o humor - pela incompreensão que mais uma vez uma mulher suscita. Onde se lê a deriva mental de alguém que abandonou a realidade de maneira radical, pode ler-se a ânsia humana de estar sempre no outro lado da estrada, insatisfeita a razão e a emoção com o que o lado de cá nunca é capaz de oferecer. No lado de lá o sentido é inverso e o tempo parece correr ao contrário. Foi por isto que apesar de terrível achei o texto de uma beleza fundamental...

Ivar C disse...

sisifo, esta coisa de precisar de escrever, seja lá o que for, para percebermos o que pensamos, é incontornável. Aquilo que se escreve é sempre mais inteligente do que nós, e isso é fodido. Ou não, nem sei... abraço.

Fausta Paixão disse...

e eu... que não tinha percebido nada a não ser dor... li deslumbrada a interpretação acima...
ai as metáforas, ivar!!!

Ivar C disse...

Fausta, neste caso específico não foi só metáforas... está à vontade. ;)