4.29.2007

e vai

Tranca a porta dum apartamento rodando duas vezes a chave. Se ela aceitar dormir com ele esta noite sempre demora mais a abrir a porta, e pode prepará-la para a cozinha com louça por lavar, a tábua de passar a ferro no meio do corredor com cuecas espalhadas, o copo de uísque no chão bem encostado ao sofá. Até pode contar uma piada, se limpar os pés mais do que duas ou três vezes, do género: - “Estive a desarrumar a casa propositadamente para ti”. Talvez ela ria, e se rir é porque está nervosa, e se estiver nervosa é porque gosta dele. Pelo menos um bocadinho. E vai.
E vai.
E vai.

Lembra-se sempre dela quando vê o vazio: uma cadeira de café vazia, um lugar sentado no autocarro vazio, um espaço numa fila de supermercado, o lugar do morto vazio num automóvel que o ultrapassa. Depois o tempo dilata-se e a noite que aí vem parece um embuste. Mais um. Talvez seja melhor contorná-la, mas contornando-a cai-se no desconhecido. É um falso argumento, sabe-se, o de poder cair no desconhecido, mas serve. E vai.
E vai.
E vai.

A noite é escura, e nela pode esconder os pensamentos tristes, afogando-os num copo de cerveja, dissimulando-os no olhar dum amigo, mascarando-os com um riso prolongado que plastifique a face. Não há lugares vazios, a não ser um. Ela é um lugar vazio que não se consegue encontrar. Vai voltar a casa depois de estacionar o carro num lugar onde cabiam dois. Vai pensar: - “Que se foda”. Depois, quando tiver que rodar duas vezes a chave para abrir a porta de casa, vai ter tempo demais para se lembrar que ela já passou por ali. Até do cheiro se vai lembrar. E da voz, e dos cabelos, e dos lábios. Outra vez que se foda. Devia ter rodado só uma vez. E vai para dentro.
E vai.
E vai.

6 comentários:

Elipse disse...

......... :(

Ivar C disse...

;)

Clara disse...

Ser divorciada é melhor (estes pensamentos não nos passam pla cabeça, demasiado ocupadas a aturar as criancinhas e assim).

Ivar C disse...

clara, eu queria era aturar a minha criancinha mais vezes...

Clara disse...

Olha, e eu queria que o meu ex-marido dissesse o mesmo (a velha história das nozes e dos dentes?).

Ivar C disse...

clarinha, é bonito pensares que este texto era sobre a minha ex-mulher. Gosto muito da minha ex-mulher, mesmo muito, mas não é... ;)