2.08.2007

pensamentos catatónicos (56)

menos que oito

Estava vermelho para os peões. Ela dum lado da rua, ele do outro. Frente a frente. Ele contou as linhas brancas da passadeira que ligavam as duas margens: oito, contou as vezes em que trocaram olhares: oito, contou as pombas que assediavam uma velha arremessando grãos de milho: oito. Sentiu o estômago apertado e objecto cardíaco a acelerar.

Depois o trânsito parou, tornou-se impossível prolongar o momento. Atravessaram a estrada em silêncio e depois a cidade engoliu-os. Engoliu-os e mastigou-os, alojando-os nas suas entranhas. Ele contou os anos que viveu sem a ver: oito.

Ontem, quando reparou nela ao balcão dum bar, teve vontade de lhe falar, de lhe perguntar se ela se lembrava desse momento. Levantou-se e a cadeira caiu produzindo uma pequena explosão sonora. Trocaram de novo olhares, mas desta vez sem manifestações espontâneas do estômago ou do coração.

Agora está sentado numa cadeira da cozinha. Os olhares, os sentimentos, os estômagos apertados, o bater do coração, os cheiros… têm um prazo limitado. Talvez seja melhor não deixar passá-los por nós em silêncio, assim como quem atravessa uma simples passadeira para peões. Não sabe qual é o prazo, mas é de certeza menos que oito.

2 comentários:

Sónia disse...

Hummm!...Parece-me a cidade a soprar...ou a conspirar...

Ivar C disse...

A soprar, Crystal. A soprar...